Por Gláucia Godeghese
Advogada
Há mais de 30 anos, o Brasil é composto por três poderes distintos e independentes: Poder Executivo, a quem incumbe administrar e governar o país; o Poder Legislativo, a quem incumbe a elaboração das leis; e o Poder Judiciário, que deve assegurar e garantir a correta aplicação da lei.
Em que pese essa independência entre os três poderes estar constitucionalmente estabelecida desde 1.988, tristemente, vez por outra, observamos a falta de coesão e respeito entre os respectivos poderes.
Isto foi exatamente o que aconteceu com a publicação da Solução de Consulta Interna nº 13, pela Secretaria da Receita Federal do Brasil!
No início de 2017, foi amplamente divulgado pela imprensa nacional que o Poder Judiciário, por meio do seu mais alto tribunal, o Supremo Tribunal Federal – STF, após décadas de discussão, finalmente declarou que o ICMS não compõe a base de cálculo das contribuições ao PIS e à COFINS.
Referida discussão judicial há muito foi iniciada pelos contribuintes que se sentiram lesados por uma exigência do fisco federal, consubstanciada na inclusão do ICMS destacado na nota fiscal, na base de cálculo das contribuições ao PIS e à COFINS.
Com a vitória dos contribuintes o fisco federal iniciou uma verdadeira odisseia, objetivando evitar a devolução dos valores indevidamente recolhidos aos contribuintes e causar incerteza e pânico no meio empresarial.
A primeira tentativa foi operacionalizada pela Solução de Consulta – SC nº 06/2017, publicada apenas 20 dias após o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal.
Referida SC afirmava que o ICMS não pode ser excluído da base de cálculo do PIS e da COFINS, justificando que apenas a emissão de Ato Declaratório pelo Procurador Geral desobrigaria a RFB de autuar os valores relativos a tal exclusão.
Também afirmava que há uma Ação Direta de Constitucionalidade aguardando julgamento, não havendo, portanto, decisão definitiva de mérito.
Ora, por certo todos os servidores públicos estão vinculados à lei. Contudo, ignorar por completo uma declaração de inconstitucionalidade efetivada pela mais alta Corte do país e afirmar, publicamente, que continuará exigindo tributo já declarado inconstitucional é claramente desrespeitoso e beira o desespero.
Nessa ocasião, coube aos advogados esclarecer aos seus clientes que uma mera Solução de Consulta não tem poder para se sobrepor às decisões judiciais favoráveis que seus clientes possuíssem. Portanto, a citada SC somente se aplicaria aos contribuintes que não possuíam decisão judicial procedente (liminar, sentença ou acórdão) e, eventualmente, pretendiam efetuar a exclusão do ICMS sem qualquer autorização judicial.
Posteriormente, com a publicação do acórdão pelo STF em outubro de 2017, o Poder Executivo, por sua Procuradoria, interpôs o recurso cabível, recurso este que, salienta-se, via de regra não possui efeitos modificativos e aguarda análise pelo STF.
Recentemente, o Poder Executivo, novamente por meio da RFB, na tentativa de intimidar os contribuintes e obstar o aproveitamento do crédito, divulgou a SC nº 13, engendrando uma tese de que o ICMS a ser excluído da base de cálculo do PIS e da COFINS, conforme declaração do STF, seria o ICMS devido, e não o ICMS destacado na nota fiscal. Este entendimento reduz ou, em alguns casos, elimina, qualquer benefício que o contribuinte teria.
Ora, como poderia um órgão do Poder Executivo – RFB – interpretar uma decisão do Poder Judiciário? Por certo que não poderia.
Adicionalmente, convém salientarmos que, em sua desesperada tentativa de conferir a mínima ‘legalidade’ à citada SC, a RFB utilizou pequenos trechos do acórdão para supostamente embasar seu entendimento de que “o montante a ser excluído da base de cálculo mensal da contribuição é o valor mensal do ICMS a recolher”, e não o valor do ICMS destacado na nota fiscal.
Contudo, em momento algum, em suas 227 páginas, o acórdão do STF faz tal afirmação. A RFB se apega aos termos de “ICMS pago ou arrecadado”, contidos no acórdão, para afirmar que o ICMS, cuja inclusão na base do PIS e da COFINS foi declarada inconstitucional, é aquele apurado e devido pelo contribuinte.
Por outro lado, ao confrontarmos o teor da SC, e suas respectivas razões, com o inteiro teor do acórdão apuramos que:
- O ICMS que historicamente foi incluído na base de cálculo do PIS/COFINS sempre foi o ICMS destacado na nota, portanto, como poderiam os contribuintes pedir a exclusão do ICMS apurado como devido no mês, sendo que este valor nunca foi objeto de inclusão na base de cálculo do PIS/COFINS? Certamente, se este fosse o caso, as ações seriam julgadas sem julgamento do mérito, por falta de interesse de agir (art. 17 NCPC);
- Ao usar o vocábulo “ICMS arrecadado”, o acórdão se refere ao valor arrecadado pelo contribuinte e repassado ao Estado (toda a tese se baseia nesta premissa). O ICMS compõe mero trânsito de valor pelo patrimônio do contribuinte, o contribuinte se torna um agente arrecadador do Estado, arrecadando o valor do ICMS e repassando ao Estado, conforme se comprova da leitura do voto do Ministro Roberto Barroso e do Ministro Gilmar Mendes. Portanto, ao referir-se ao ICMS arrecadado, não trata o acórdão sobre o ICMS pago pelo contribuinte;
- Igualmente, quando o acórdão se refere ao “ICMS pago”, o faz em sentido diverso daquele pretendido pela RFB. Esta entende que o ICMS pago é aquele apurado e pago pelo próprio contribuinte, contudo, o acórdão se refere ao ICMS pago pelo cliente, recebedor da nota fiscal, arrecadado pelo contribuinte e, finalmente, repassado ao Estado (o voto da Ministra Carmen Lúcia foi neste sentido);
- A RFB utiliza-se da doutrina do Prof. Roque Carrazza para embasar seu entendimento, doutrina esta utilizada amplamente quando da lavratura do voto da Ministra Carmen Lúcia. Contudo, o Prof. Carrazza foi advogado dos contribuintes no julgamento do RE nº 240.785 (primeiro precedente sobre a tese em questão). Assim, é totalmente incongruente defender que o advogado dos contribuintes adotaria ou defenderia uma linha de defesa que beneficia a RFB;
- O acórdão do STF diz claramente que está analisando questão já definida pelo STJ, nos autos do Resp. nº 1.144.469, onde os contribuintes restaram vencidos, e firmou-se a tese “o valor do ICMS, destacado na nota, devido e recolhido pela empresa, compõe seu faturamento”. A tese firmada pelo STJ era desfavorável aos contribuintes, mas referia-se, sem sombra de dúvida, ao ICMS destacado na nota. Por sua vez, o STF deixou claro que estava analisando questão já decidida pelo STJ, portanto, se o ICMS destacado na nota comporia ou não a base de cálculo do PIS e da COFINS;
- A RFB, de forma inidônea e ardilosa, utiliza trechos dos votos, excluindo, contudo, a conclusão que é favorável aos contribuintes (vide voto do Ministro Luiz Fux, pág. 3, onde os parágrafos 1 a 4 foram transcritos, e os parágrafos 5 e 6 foram excluídos);
- Após o julgamento pelo STF, o Ministro Gilmar Mendes (que votou contra os contribuintes naquela ocasião) proferiu decisão monocrática, curvando-se ao entendimento do STF, assegurando que “o Supremo Tribunal Federal afirmou que o montante de ICMS destacado nas notas fiscais não constitui receita ou faturamento, razão pela qual não pode fazer parte da base de cálculo do PIS e da COFINS.” (Rext nº 954.262);
- O TRF da 4ª Região já se posicionou recentemente pelo afastamento da SC RFB nº 13, consignando claramente que o ICMS que deve ser excluído da base de cálculo do PIS e da COFINS é o ICMS destacado na nota, ao afirmar que “no cálculo dos valores recolhidos indevidamente, deverão ser consideradas apenas as operações oneradas simultaneamente pelo ICMS e pelas contribuições em apreço, com a dedução da integralidade do ICMS destacado nas notas fiscais de venda e de prestações de serviços sujeitos ao imposto estadual, independentemente da utilização de créditos para a redução do quantum a ser recolhido aos cofres públicos.” (RA nº 5013847- 79.2017.4.04.7100).
Assim, é evidente que o teor da SC nº 13 demonstra a intenção da RFB minimizar o impacto financeiro causado aos cofres públicos pela decisão do STF que, em mar/17, julgou inconstitucional a inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e da COFINS. Contudo, não pode o Poder Executivo simplesmente ignorar, ou mesmo desvirtuar, uma decisão da Suprema Corte, no intuito de saciar a sanha arrecadatória do Leão.
Novamente, triste é testemunhar que o Pode Executivo, por meio da RFB, desrespeita a decisão da Suprema Corte do país, a quem tão somente incumbe a proteção e interpretação da legislação pátria.
Para os contribuintes que já discutem a tese judicialmente, fiquem atentos, pois a ardilosa posição fiscal poderá incomodá-los a ponto de ser necessário socorrer-se novamente do Poder Judiciário e, para aqueles que eventualmente ainda não discutem, procurem rapidamente amparo judicial, pois nosso Executivo já demonstrou que não se curvará facilmente à decisão do STF.