Brasil: o País onde o Fisco não aceita derrotas e o Judiciário é posto à Prova – Inclusive na Esfera Tributária

Por Glaucia Godeghese
Advogada

 

Há décadas os contribuintes pleiteiam, perante o Poder Judiciário, a declaração de inconstitucionalidade da inclusão do ICMS na base de cálculo das contribuições ao PIS e a Cofins.

Finalmente, em março de 2017 o Supremo Tribunal Federal – STF declarou, no julgamento do Recurso Extraordinário – RE nº 574.706/PR, a inconstitucionalidade da referida inclusão.

Por ter sido proferido sob o rito da repercussão geral, a decisão do STF obrigatoriamente deve ser observada e seguida por todos os juízes em território nacional.

Pensávamos na época que mais uma discussão tributária, que já perdurava por anos e anos, tinha chegado ao fim, dessa vez, com um feliz desfecho para os contribuintes.

Contudo, mesmo diante de uma decisão da Suprema Corte Brasileira, o fisco não se deu por vencido, assim como uma criança birrenta faz, esperneou, jogou-se no chão e incansavelmente, por suas ações, reiterou que, no país com uma das maiores cargas tributárias mundiais, o fisco federal não gosta de ser contrariado.

Deixando de lado o cabimento dos “Embargos Declaratórios” interpostos pelo fisco federal e seu respectivo teor, bem como, o recente pedido de suspensão de todos os processos sobre o tema, vamos falar especificamente da Solução de Consulta Interna – SC Cosit nº 13.

Referida SC foi divulgada em 23/10/2018, trazendo o entendimento, segundo o qual o ICMS a ser excluído da base de cálculo do PIS/Cofins seria aquele a ser efetivamente recolhido mensalmente pelos contribuintes (e não aquele destacado nas notas fiscais). Esse entendimento reduz ou até mesmo elimina, qualquer benefício que o contribuinte teria.

A SC nº 13 utilizou pequenos trechos do acórdão (que possui 227 páginas) para supostamente embasar seu entendimento de que “o montante a ser excluído da base de cálculo mensal da contribuição é o valor mensal do ICMS a recolher” e não o valor do ICMS destacado na nota fiscal.

Ratificando a posição adotada através da referida SC, o fisco editou, em 11/10/2019, a Instrução Normativa nº 1.911, reafirmando seu entendimento no sentido de exclusão apenas da parcela correspondente ao ICMS a recolher no caso dos contribuintes que possuem amparo judicial para exclusão do referido imposto da base de cálculo do PIS e da Cofins.

Contudo, em momento algum, em suas 227 páginas, o acórdão do STF faz tal afirmação. A RFB se apega aos termos de “ICMS pago ou arrecadado” contidos no acórdão para afirmar que o ICMS, cuja inclusão na base do PIS e da Cofins foi declarada inconstitucional, é aquele a ser recolhido pelo contribuinte. Entretanto, ao confrontarmos o teor da consulta e suas respectivas razões com o inteiro teor do acórdão apuramos que:

 

  1. O ICMS que historicamente foi incluído na base de cálculo do PIS/Cofins sempre foi o ICMS destacado na nota e não o ICMS apurado como devido no mês/competência, portanto, como poderiam os contribuintes pedir a exclusão de um ICMS (apurado como devido no mês) que nunca foi objeto de inclusão na base de cálculo do PIS/Cofins? Certamente, se esse fosse o caso, as ações ajuizadas teriam sido julgadas sem julgamento do mérito, por falta de interesse de agir (art. 17, NCPC);
  2. Ao usar o termo “ICMS arrecadado” o acórdão se refere ao valor arrecadado pelo contribuinte, mediante o destaque nas notas fiscais. Toda a tese se baseia nessa premissa, de que o ICMS destacado na nota compõe mero trânsito de valor pelo patrimônio do contribuinte, o qual se torna um agente arrecadador do Estado, arrecadando o valor do ICMS e repassando ao ente tributante, conforme se comprova da leitura do voto do Ministro Roberto Barroso (vide páginas 6, 7 e 15 do referido voto) e do Ministro Gilmar Mendes (vide página 11). Portanto, ao referir-se ao ICMS arrecadado não trata o acórdão sobre o ICMS pago pelo contribuinte;
  3. Igualmente quando o acórdão se refere ao “ICMS pago”, o faz em sentido diverso daquele pretendido pela RFB. Esta entende que o ICMS pago é aquele apurado e recolhido pelo próprio contribuinte, contudo, o acórdão se refere ao ICMS pago pelo cliente, recebedor da mercadoria e da respectiva nota fiscal, arrecadado pelo contribuinte e, finalmente, repassado ao Estado (vide página 12 do voto da Ministra Carmen Lúcia);
  4. A RFB faz larga utilização da doutrina do ilustre jurista Prof. Roque Carrazza para supostamente embasar seu entendimento, doutrina esta que foi utilizada amplamente quando da lavratura do voto da Ministra Carmen Lúcia. Contudo, o Prof. Carrazza foi advogado dos contribuintes no julgamento do RE nº 240.785 (primeiro precedente favorável aos contribuintes sobre a tese em questão). Assim, é totalmente incongruente defender que o advogado dos contribuintes adotaria ou defenderia uma linha de defesa que beneficia a RFB em detrimento dos interesses do seu próprio cliente;
  5. O acórdão do STF diz claramente que está analisando questão já definida pelo STJ, nos autos do Recurso Especial nº 1.144.469, onde os contribuintes restaram vencidos e firmou-se a tese segundo a qual “o valor do ICMS, destacado na nota, devido e recolhido pela empresa, compõe seu faturamento”. A tese firmada pelo STJ era desfavorável aos contribuintes, mas referia-se, sem sombra de dúvida, acerca do ICMS destacado na nota. Por sua vez, o STF deixou claro que estava analisando questão já decidida pelo STJ, qual seja, se o ICMS, destacado na nota, comporia ou não a base de cálculo do PIS e da Cofins (vide páginas 5, 15 e 16 do voto do Ministro Edson Fachin e página 1 do voto do Ministro Luiz Fux);
  6. Na SC nº 13 a RFB, de forma inidônea e ardilosa, utiliza trechos dos votos, excluindo, contudo, a conclusão que é favorável aos contribuintes (vide voto do Ministro Luiz Fux, página 3, onde os parágrafos 1 a 4 foram transcritos e os parágrafos 5 e 6 foram excluídos);
  7. Após o julgamento pelo Pleno do STF, em mar/17, o Ministro Gilmar Mendes (que, salienta-se, votou contra os contribuintes) proferiu decisão monocrática, curvando-se ao entendimento do STF, onde afirmou claramente que o “Supremo Tribunal Federal afirmou que o montante de ICMS destacados nas notas fiscais não constituem receita ou faturamento, razão pela qual não podem fazer parte da base de cálculo do PIS e da COFINS.” (RE nº 954.262/RS);
  8. O TRF da 4ª Região já se posicionou pelo afastamento da SC Cosit nº 13, consignando claramente que o ICMS que deve ser excluído da base de cálculo do PIS e da Cofins é o ICMS destacado na nota ao afirmar que “no cálculo dos valores recolhidos indevidamente, deverão ser consideradas apenas as operações oneradas simultaneamente pelo ICMS e pelas contribuições em apreço, com a dedução da integralidade do ICMS destacado nas notas fiscais de venda e de prestações de serviços sujeitos ao imposto estadual, independentemente da utilização de créditos para a redução do quantum a ser recolhido aos cofres públicos.” (AC nº 5002638-16.2017.4.04.7003 e AC nº 5001670-62.2017.4.04.7204);
  9. O TRF da 3ª Região já se posicionou expressamente no sentido de que ICMS que deve ser excluído da base de cálculo do PIS e da Cofins é o ICMS destacado nas notas fiscais, afastando, portanto, o entendimento adotado na SC nº 13 e na IN RFB nº 1.911/19 (AC nº 5007855-20.2018.4.03.6102, 4ª Turma, DJe 10/06/2020; AC nº 5000637-46.2017.4.03.6143, 3ª Turma, DJe 09/06/2020; AI nº 5010472-86.2019.4.03.0000, 6ª Turma, DJe 11/05/2020);
  10. O próprio Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – Carf, que é a 2ª instância de julgamento na esfera administrativa, proferiu acórdão, em 29/01/2019, nos autos do Recurso Administrativo nº 10855.908014/2009, reiterando o entendimento do STF e não fazendo qualquer menção à SC Cosit nº 13/18. Portanto, apesar de ser um órgão de julgamento administrativo, não se aprofundou na controvérsia causada pelo entendimento da RFB na referida SC.

 

Fato é que a interpretação da RFB não tem o condão de se sobrepor ao entendimento do STF, o qual, definiu a questão de forma diferente do entendimento esposado pela RFB na SC COSIT nº 13/18 e na IN RFB nº 1.911/19.

Contudo, em um país onde até mesmo o passado parece, vez por outra, incerto, o que os contribuintes devem esperar? Bem, de nossa parte, continuamos acreditando no bom senso e na justiça, aguardado a reiteração de uma vitória obtida há mais de três anos!

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