O reconhecimento contábil e tributário dos indébitos tributários e suas intempéries

Por Luciano Nutti
Sócio-Diretor Consultoria – Impostos Diretos
Athros Auditoria e Consultoria

 

O momento adequado para o reconhecimento dos indébitos tributários, especialmente sob a ótica tributária, sempre se revestiu de grande polêmica, com entendimentos diversos, da posição extremamente conservadora a mais arrojada.

Sob a ótica contábil, podemos dizer que o tema é “pacificado”. O item 35 do Pronunciamento Técnico CPC nº 25 (Correlação às Normas Internacionais de Contabilidade – IAS 37), estabelece o seguinte:

(…) Se for praticamente certo que ocorrerá uma entrada de benefícios econômicos, o ativo e o correspondente ganho são reconhecidos nas demonstrações contábeis do período em que ocorrer a mudança de estimativa. (…)

Tendo em vista os desdobramentos relacionados ao PIS e à COFINS incidentes sobre o ICMS (a chamada “tese de século”), o Instituto dos Auditores Independentes do Brasil (IBRACON) se manifestou sobre o tema através da Circular 07/2021. Vejamos um trecho da orientação do Ibracon neste sentido:

“Com a decisão do STF com repercussão geral, em muitas circunstâncias, a compensação ou o ressarcimento dos valores pagos a maior referentes aos créditos tributários mencionados é uma questão temporal, mesmo nos casos em que as entidades aguardam o trânsito em julgado de seu processo individual, uma vez que a matéria já está definida, o que torna sua realização praticamente certa, à luz do parágrafo 33 do CPC 25, transcrito acima. Tal entendimento poderia ser refutado em cenários em que o processo específico de uma entidade apresentar riscos específicos, considerando, por exemplo, questões meritórias acessórias ou processuais, bem como limitação na capacidade de realização dos referidos créditos, que podem representar, em seu caso particular, que a realização do ganho não seria praticamente certa. Nesse sentido, se for praticamente certo que ocorrerá uma entrada de benefícios econômicos, o ativo e o correspondente ganho devem ser reconhecidos no período em que ocorrer a mudança de estimativa e eventuais provisões reconhecidas devem ser revertidas, desde que observado o que prescreve o parágrafo 59 do CPC 25.”

Do ponto de vista contábil, portanto, resta cristalino que, se for “praticamente certo” que ocorrerá uma entrada de benefícios econômicos, o ativo e o correspondente ganho devem ser reconhecidos.

Na prática temos visto que as empresas de Auditoria, de forma geral, têm adotado a data do trânsito em julgado para o reconhecimento contábil dos indébitos tributários, o que tecnicamente, sob a ótica contábil, nos parece uma posição bastante coerente.

A ótica tributária, contudo, exige a avaliação do tema sob outro prisma. Quando do trânsito em julgado da decisão procedente, há mera expectativa de direito sobre o recebimento do indébito tributário. Isso porque o seu efetivo aproveitamento, ou seja, seu ingresso no patrimônio do contribuinte/jurisdicionado fica pendente de efetivação do pedido de habilitação de crédito pelo contribuinte e de seu deferimento pela Receita Federal do Brasil (RFB). Há ainda outras etapas, quais sejam, a formalização das compensações e, finalmente, homologação de tais compensações pela RFB.

Até essas etapas estarem concluídas e, desde que concluídas com sucesso, podemos afirmar, em uma posição simplista, que não há direito ao indébito tributário, mas sim mera expectativa de direito ao ingresso patrimonial positivo.

Em que pese as considerações acima, convém ressaltar que o pedido de habilitação indica que o contribuinte possui razoável certeza sobre o indébito tributário e o seu deferimento pela RFB configura forte sinalização de confirmação ao direito alegado pelo contribuinte.

Neste sentido, utilizar a data do deferimento do pedido de habilitação pela RFB como fato gerador dos tributos nos parece uma posição bastante razoável, além de não ser tanto conservadora, tampouco muito arrojada.

A RFB já havia se posicionado de maneira muito próxima a este entendimento, através da Solução de Consulta COSIT nº 183/21, determinando a data da entrega da primeira PER/DCOMP como fato gerador do IRPJ, CSLL, PIS e COFINS. Vejamos:

“Na hipótese de compensação de indébito decorrente de decisões judiciais transitadas em julgado nas quais em nenhuma fase do processo foram definidos pelo juízo os valores a serem restituídos, é na entrega da primeira Declaração de Compensação, na qual se declara sob condição resolutória o valor integral a ser compensado, que o indébito e os juros de mora sobre ele incidentes até essa data devem ser oferecidos à tributação pelo IRPJ.”

A data do deferimento do Pedido de Habilitação e a data da entrega do primeiro PER/DCOMP tendem a ser muito próximas (geralmente ocorrem no mesmo mês), razão pela qual entendemos que a referida Solução de Consulta se revestiu de razoabilidade quanto ao momento de tributação.

Assim, até então, tínhamos momentos distintos entre o reconhecimento contábil dos indébitos tributários e sua tributação para fins de IRPJ, CSLL, PIS e COFINS, e isso é absolutamente normal.

Entretanto, em dezembro de 2023, a Solução de Consulta COSIT nº 308/23 trouxe uma novidade que mudou este cenário. Referida Solução de Consulta foi “parcialmente vinculada” à citada SC COSIT nº 183/21, mantendo a entrega da primeira PER/DCOMP como marco para a incidência dos tributos, porém, inovou ao determinar o seguinte:

“Caso haja a escrituração contábil de tais valores em momento anterior à entrega da primeira Declaração de Compensação, é no momento dessa escrituração que tais valores devem ser oferecidos à tributação.”

Cabe ressaltar que essa menção é feita apenas em relação ao IRPJ e à CSLL, não sendo citada em relação ao PIS e à COFINS.

Não há palavras para descrever tamanho absurdo! Afinal, como pode o mero reconhecimento contábil (diga-se de passagem, em linha com as normas contábeis e orientações do IBRACON) alterar o fato gerador do IRPJ e da CSLL.

É inegável que a RFB foi infeliz nesta interpretação que certamente não pode prosperar! Contudo, os contribuintes atualmente se veem em um dilema, pois ao seguir a orientação contábil (totalmente coerente, inclusive), estariam antecipando a incidência do IRPJ e da CSLL aos olhos da RFB.

Obviamente, as empresas de Auditoria não irão recuar quanto à interpretação e adoção da melhor prática contábil meramente por conta deste posicionamento incoerente da RFB.

Vale lembrar que, no caso do IRPJ e da CSLL, já foi proferida decisão favorável pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em setembro de 2021 a respeito da não incidência tributária sobre a atualização (SELIC) destes indébitos tributários, não se aplicando o mesmo entendimento em relação ao PIS e à COFINS.

Por outro lado, não há incidência de PIS e de COFINS sobre o valor principal do indébito tributário apurado, conforme estabelece o Ato Declaratório Interpretativo (ADI) nº 25/2023

Em suma, o valor principal dos indébitos tributários deve ser tributado apenas para fins de IRPJ e de CSLL e sua atualização monetária apenas pelo PIS e pela COFINS.

Frente à tamanha incongruência da RFB, restará aos contribuintes, em especial aqueles que são auditados, optarem por manter a boa prática contábil e anteciparem a tributação para evitarem problemas com o Fisco, ou, alternativamente, reconhecerem contabilmente os indébitos tributários apenas quando da entrega da primeira PER/DCOMP e, eventualmente, conviverem com uma ressalva em seus pareceres de auditoria.

Nenhuma das situações acima é confortável e, por essa razão, a nosso ver, uma “intervenção” dos órgãos da classe contábil junto à RFB é algo a ser considerado na busca pela obtenção de maior segurança e razoabilidade na tratativa do tema.

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