Deságio na transferência de créditos tributários — Tratamento Contábil e Tributário

Por Pedro César da Silva
CEO
Athros Auditoria e Consultoria

Em decorrência de suas atividades, as empresas podem acumular créditos de ICMS, tendo em vista especificidades de sua operação, por exemplo, o fato de ser predominantemente exportadora, não gerando débitos em suas saídas suficientes para compensar integralmente os créditos de ICMS registradas em suas entradas.

O acúmulo de crédito de ICMS é um ativo, no entanto, caso não seja convertido em caixa, acaba se travestindo em um custo financeiro para as empresas.

Nesse esteio, esses créditos têm impacto patrimonial para as empresas e são em geral reconhecidos em conta do ativo circulante denominada ICMS a recuperar.

Os estados criaram alternativas legislativas para que as empresas que acumulam créditos de ICMS possam transferi-los para terceiros, transformando-os em um meio de pagamento de insumos, equipamentos ou até mesmo para o recebimento em caixa.

Não podemos deixar de registrar que a recuperação dos créditos acumulados passa por processos administrativos burocráticos devido a restrições impostas pelos órgãos fiscais.

Apesar disso, as empresas se submetem aos expedientes previstos nas legislações estaduais e obtém a aprovação dos  para utilizarem os créditos.

Nosso objetivo neste artigo é abordar o tratamento tributário e contábil sobre a transferência de crédito acumulado de ICMS para empresas não interdependentes.

Essas operações normalmente são feitas mediante a negociação de um determinado valor de deságio. Assim, nos exemplos de registros contábeis que iremos abordar consideraremos uma operação na qual o crédito tributário transferido totaliza R$ 1.000  e o adquirente irá pagar R$ 800 acarretando, assim, em um deságio de R$ 200.

Do ponto de vista da empresa que detém o crédito objeto da transfrência, podemos indicar duas alternativas de escrituração contábil, quais sejam:

a) Reconhecimento direto de perda
D – Caixa                                           R$    800
D –  Perda (resultado)                    R$    200
C –  ICMS a recuperar                    R$ 1.000

b) Reconhecimento de nova receita
D – Caixa                                                            R$      800
C –   Receita                                                       R$      800
D –  Baixa ICMS a Recuperar (resultado)   R$   1.000
C –  ICMS a recuperar                                      R$   1.000

Podemos observar que o impacto no resultado do exercício é o mesmo em ambas as alternativas. No entanto, o reconhecimento de nova receita leva à discussão do impacto tributário inerente.

No âmbito das normas contábeis o CPC 00  — Estrutura Conceitual para o Relatório Financeiro  — define receita como aumentos nos ativos, ou reduções nos passivos, que resultam em aumentos no patrimônio líquido, exceto aqueles referentes a contribuições de detentores de direitos sobre o patrimônio.

Infelizmente, a definição acima não é suficiente para encerrar a polêmica.

Entendemos que o lançamento em que há o reconhecimento direto de uma perda (“a”) é o que representa melhor a essência da transação em que há uma mutação patrimonial com perda e não uma nova receita.

No entanto, não podemos deixar de consignar que há entendimentos divergentes.

Não se trata apenas de uma discussão quanto a melhor representação contábil da operação mas, principalmente, quanto ao reflexo fiscal decorrente da eventual incidência do PIS e da Cofins sobre a receita de R$ 800.

Um precedente judicial que ampara o entendimento de que não se trata de nova receita sujeita a incidência do PIS e da Cofins, é a manifestação da ministra Rosa Weber, que, no Recurso Extraordinário nº 606.107/RS decidiu, em sede de repercussão geral, que não incide PIS e Cofins sobre a cessão de créditos de ICMS acumulados em decorrência de exportação, dentre outros, sob o fundamento de que tal ingresso não se amoldaria ao conceito constitucional de receita:

Eis o trecho da manifestação da ministra: A contabilidade constitui ferramenta utilizada também para fins tributários, mas moldada nesta seara pelos princípios e regras próprios do Direito Tributário. Sob o específico prisma constitucional, receita bruta pode ser definida como o ingresso financeiro que se integra no patrimônio na condição de elemento novo e positivo, sem reservas ou condições. […] O aproveitamento dos créditos de ICMS por ocasião da saída imune para o exterior não gera receita tributável. Cuida-se de mera recuperação do ônus econômico advindo do ICMS, assegurada expressamente pelo art. 155, § 2º, X, “a”, da Constituição Federal.

No âmbito administrativo, podemos citar o Acórdão do Carf 105-17168, de 2008, o qual em resumo indica que não há caracterização de receita para incidência de PIS, Cofins, IRPJ e CSLL no lucro presumido sobre a cessão de créditos de ICMS, por se tratar essa operação como mera mutação patrimonial.

No entanto, como antecipamos, trata-se de tema ainda não consolidado, portanto, há decisões do Carf que consideram tratar-se de recuperação de custos e outras que considetam tratar-se de nova receita.

Abordados os comentários sobre os reflexos na empresa vendedora dos créditos, adiante tecemos breves comentários sob o ponto de vista da empresa adquirente.

O lançamento contábil que melhor representa a essência da transação é o seguinte:

D – Impostos a recuperar      R$ 1.000
C – Caixa                                   R$ 800
C – Receita (deságio)             R$ 200

No tocante à empresa adquirente a discussão envolve a natureza da receita, se financeira ou outras receitas operacionais.

Há um efeito relevante quanto a alíquota aplicável ao PIS e a Cofins. Se for caracterizada como receita de natureza financeira a alíquota do PIS/Cofins seria de 4,65%, ao passo que descatacterizada esta condição a tributação é de 9,25%, ambos os casos para empresas que se enquadram na sistemática do lucro real.

Importante ressaltar que a Receita Federal, por meio da Solução de Consulta 531/2017, destaca que a determinação da natureza da receita auferida depende da caracterização do negócio jurídico entre as partes. Abaixo a reprodução de um trecho da referida Solução de Consulta:

“27. Tratando-se de desconto condicional obtido, a determinação da natureza da receita auferida depende da caracterização do negócio jurídico firmado entre a consulente e seus fornecedores, nos termos das condições contratuais pactuadas, já que os descontos obtidos podem decorrer de acordo comercial que pretenda compensar o adimplemento antecipado do valor por ela devido ou oferecer compensação por metas alcançadas, reembolso de despesas com propagandas e promoções ou bonificações para custeio, dentre outros.”

A Solução de Consulta nos leva a considerar que cada caso deve ser analisado cuidadosamente tendo como parâmetro inicial as condições contratuais de cada operação.

Cabe registrar que por meio do decidido no Acórdão 3301-007.105  — 3ª. Câmara da 1ª Turma — Processo 10.680.002917/2005-11 — Sessão de 19.11.2019 o Carf decidiu, em situação similar, que essa operação deveria ser caracterizada como receita de natureza financeira. Reproduzimos a ementa e trecho do acórdão:

“ASSUNTO: CONTRIBUIÇÃO PARA O FINANCIAMENTO DA SEGURIDADE SOCIAL (COFINS)

RECEITAS ORIUNDAS DA DIFERENÇA (DESÁGIO) ENTRE O PREÇO PAGO E O VALOR DO CRÉDITO COMPENSÁVEL, ORIGINADO DE PREJUÍZO FISCAL E DA BASE NEGATIVA DE CSLL ADQUIRIDOS DE TERCEIROS, POR CONTRATO DE CESSÃO DE CRÉDITOS PARA QUITAÇÃO DE DÉBITO CONSOLIDADO NO REFIS. RECEITAS QUE NÃO COMPÕEM O FATURAMENTO.

(…)

20.Portanto, as receitas financeiras, dentre elas os recebíveis a título de cessão de crédito, por não pertencerem, à época dos fatos geradores objeto destes autos, ao conceito de faturamento, não poderiam compor a base de cálculo do PIS e da COFINS.”

 

Por outro lado, em 21 de setembro de 2021, o Carf, por meio da decisão proferida no acórdão 3302-011.716 — 3ª. Seção, em situação também envolvendo deságios na aquisição de precatórios, entendeu que o desconto relativo a esta aquisição NÃO possui natureza financeira.

“RECEITA FINANCEIRA. CONCEITO. DESÁGIO NA AQUISIÇÃO DE PRECATÓRIO. NÃO ENQUADRAMENTO.

Receita financeira é aquela decorrente de uma aplicação (lato sensu) financeira, que pode também ser na forma de empréstimo (mútuo) ou de pagamento antecipado. Não se enquadram nesta categoria os deságios obtidos na aquisição de crédito de terceiros.

(…)

Quanto à classificação como receita financeira, também não entendo possível, pela natureza da operação, que se diferencia daquela que caracteriza a receita financeira, relacionada normalmente com um ganho financeiro pelos recursos disponibilizados para terceiros (juros por investimentos em títulos/aplicações ou por atraso do cliente nos financiamentos concedidos) ou com o ganho pela antecipação na quitação de obrigações (descontos obtidos). Precatório não é título de crédito, mas um direito, adquirido de terceiro por meio de uma cessão.” (Grifamos). 

Diante de todo o exposto, considerando as polêmicas e a falta de uma jurisprudência consolidada, sugerimos que os profissionais envolvidos com o tema fiquem atentos à sua evolução.

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