Risco de Retrocesso na Qualidade da Escrituração Contábil

Por Pedro César da Silva
Diretor da Athros

 

Com o objetivo de adequar a elaboração das demonstrações contábeis às normas internacionais de contabilidade editadas pela International Financial Reporting Standard – IFRS, e torná-las compreensíveis para os investidores internacionais, foi sancionada a Lei n. 11.638/07.

No entanto, havia resistência às mudanças, decorrente da justificada preocupação quanto a seus reflexos na apuração do IRPJ, CSLL, PIS e da COFINS. Assim, com intuito de eliminar essas resistências, foi considerada, desde a origem, a neutralização dos referidos reflexos. No primeiro momento, através da inclusão do parágrafo 7º no artigo 177 da Lei 6.404/76 e, posteriormente, por meio da criação do Regime Tributário de Transição (RTT), criado pela MP 449/08, convertida na Lei 11.941/09.

Com a edição da Lei 12.973/14, o RTT foi extinto, e os ajustes necessários para atender ao objetivo de neutralidade foram regulamentados.  Adicionalmente, foi introduzido um dispositivo (art. 58 da Lei 12.973/14), segundo o qual a modificação ou a adoção de métodos e critérios contábeis, por meio de atos administrativos emitidos com base em competência atribuída em lei comercial, que sejam posteriores à publicação da Lei 12.973/14, não terão implicação na apuração do IRPJ, CSLL, PIS e da COFINS até que lei tributária regule a matéria.

Após praticamente 12 anos do início da implementação das normas internacionais de contabilidade, não podemos deixar de reconhecer que foi, e em certa medida ainda está sendo, um processo árduo, e que requereu esforços que incluíram a mudança de cultura, treinamento dos profissionais e investimentos na adaptação dos sistemas informatizados de gestão.

Surpreendentemente, foi recentemente noticiado pelo Valor Econômico que, dentre as mudanças tributárias em análise pela equipe econômica do Governo Federal, está a proposta de criar uma base de cálculo do imposto de renda partindo de um novo conceito de lucro fiscal, ao invés de partir do lucro contábil.

As justificativas do Governo passam por uma ideia equivocada de simplificação e de diminuição de litígios, pois, segundo o mesmo, a adoção das normas internacionais (IFRS), a partir de 2008, tem gerado muita complexidade, com grande quantidade de ajustes para a determinação do lucro fiscal, o que tem provocado o aumento dos litígios.

A adoção da ideia do Governo significaria que todo o esforço feito pelos contribuintes na interpretação e implementação das normas contábeis e de mecanismos de identificação e controle dos ajustes para fins fiscais seriam jogados fora.

Além da discussão sobre a conveniência da mudança face aos investimentos já realizados pelas empresas, é justificável o temor de que a verdadeira motivação da ideia seria possibilitar o aumento da carga tributária.

Essa preocupação não pode ser descartada devido à situação fiscal pela qual o país atravessa, e também com base em experiências anteriores.

Um exemplo de questão que poderá gerar polêmica diz respeito à isenção aplicável aos lucros distribuídos. Sabemos que há propostas para que o lucro distribuído pelas empresas passe a sofrer tributação. No entanto, vamos admitir, para fins da presente discussão, que seja mantida a atual isenção prevista no artigo 10 da Lei 9.249/95:

“Artigo 10. Os lucros ou dividendos calculados com base nos resultados apurados a partir do mês de janeiro de 1996, pagos ou creditados pelas pessoas jurídicas tributadas com base no lucro real, presumido ou arbitrado, não ficarão sujeitos à incidência do imposto de renda na fonte, nem integrarão a base de cálculo do imposto de renda do beneficiário, pessoa física ou jurídica, domiciliado no País ou no exterior”.

O referido artigo menciona resultados apurados sem tecer comentários adicionais, afinal, nunca houve dúvidas de que o resultado mencionado pela legislação tributária é o resultado extraído da escrituração contábil e, portanto, apurado mediante a aplicação das normas internacionais de contabilidade.

No entanto, caso a pretensão do Governo se concretize, passaríamos a ter dois resultados, um para fins fiscais e outro para fins societários.

Assim, haveria espaço, ou ao menos o risco, das autoridades fiscais entenderem que o lucro que estaria isento de tributação seria o lucro fiscal e não o societário.

Em 2013, esse tema foi abordado pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, que emitiu o Parecer PGFN/CAT n. 202 indicando seu entendimento de que o lucro a ser considerado para fins da isenção prevista no art. 10 da Lei n. 9.249/95 é o lucro fiscal obtido com a aplicação do Regime Tributário de Transição de que trata o art. 15 da Lei n. 11.941/09, e não o lucro societário, obtido com base nas regras contábeis da Lei n. 6.404/76, com as alterações trazidas pela Lei n. 11.638/07.

Este entendimento chegou a ser inserido na legislação tributária através da Instrução Normativa n. 1.397/13, com pretensões de regulamentar o Regime Tributário de Transição instituído pela citada Lei 11.941/09, que trouxe em seu art. 28 a possibilidade de tributar lucros ou dividendos calculados com base nos novos normativos societário-contábeis.

Nesse ponto, entendo ser oportuno mencionar esclarecedor comentário do ilustre jurista Luís Eduardo Schoueri, ao tratar da natureza da neutralidade tributária:[1]

“Ora, a neutralidade, como se viu, não é absoluta. Ela é fruto do texto legal, que não dá a abrangência que se poderia imaginar. Basta considerar, para tanto, o caso dos dividendos, contemplados pelo artigo 10 da mesma Lei 9.249/1995. São eles calculados a partir do patrimônio da sociedade, apurado em conformidade com as normas contábeis hoje vigentes. Acaso a neutralidade implicaria afirmar que a isenção ali assegurada apenas se estenderia a dividendos apurados segundo os critérios vigentes em 31 de dezembro de 2007 e que valores excedentes não teriam o tratamento tributário de dividendos? Ou, ao contrário, que apesar de a contabilidade apontar valor ínfimo de dividendos, haveria que assegurar isenção sobre montante maior, apurado segundo os antigos critérios contábeis? Um e outro raciocínio não poderiam prosperar: a legislação tributária isenta os dividendos pagos pela pessoa jurídica. A forma como os dividendos se apuram é matéria da legislação societária. Sobre os dividendos assim apurados aplica-se a legislação tributária”.

A pretensão de considerar isentos tão somente os lucros apurados com base nas normas contábeis vigentes em 31/12/2017 foi duramente criticada, à época, pelo meio jurídico e, provavelmente vislumbrando a fragilidade de seu entendimento, a RFB, um ano depois, voltou atrás na pretensão através da IN 1.492/14, evitando dessa forma o que seria mais um liígio de grande relevância.

Para finalizar, faz-se necessário lembrar que a cultura contábil brasileira sempre foi muito vinculada ao atendimento das demandas do fisco, muitas vezes deixando de lado princípios norteadores da ciência contábil. Assim, excluindo-se as empresas que sujeitam-se a órgãos reguladores como, por exemplo, as companhias de capital aberto, a pretensão da RFB certamente acarretaria em um retrocesso na qualidade das informações fornecidas pelas demonstrações contábeis de uma forma geral, pois a maioria das empresas dedicaria seus esforços para atender a legislação fiscal, colocando em segundo plano as normas internacionais de contabilidade.

1] SCHOUERI, Luís Eduardo. Juros sobre Capital Próprio: Natureza Jurídica e Forma de Apuração diante da “Nova Contabilidade”. In. LOPES, Alexsandro Broedel Lopes e MOSQUERA, Roberto Quiroga. Controvérsias Jurídico-Contábeis (Aproximações e distanciamentos). 3º Volume. São Paulo: Dialética, 2012, p. 191.

Compartilhe nas mídias:

WhatsApp
Facebook
LinkedIn
Email

Comente o que achou: