Por Glaucia Godeghese
Advogada
Godeghese e Silva Advogados Associados
As empresas que comercializam mercadorias no âmbito eletrônico começaram 2022 com uma dúvida atroz: devemos ou não recolher o Difal?
Para entendermos o porquê dessa dúvida precisamos relembrar a origem do Difal e as polêmicas em torno de sua cobrança.
Com os avanços tecnológicos e a crescente digitalização do consumo, empresas comerciais passaram a disponibilizar seus produtos para compra de forma eletrônica, tornando possível que uma empresa estabelecida fisicamente em uma grande metrópole venda seus produtos para consumidores localizados em qualquer cidade de qualquer estado brasileiro.
Com o relevante aumento das vendas pelo comércio eletrônico nos últimos anos, a arrecadação do ICMS incidente sobre tais vendas ficou concentrada nos estados onde estão estabelecidos os vendedores, acarretando perda de arrecadação para os estados onde os consumidores estavam localizados e as mercadorias seriam utilizadas ou consumidas.
Com o objetivo de acabar com essa disparidade arrecadatória foi promulgada a Emenda Constitucional – EC nº 87/2015, prevendo que nas operações que destinem bens e serviços a consumidor final, contribuinte ou não do imposto, o estado destino da mercadoria cobraria um diferencial de alíquota – Difal, correspondente à diferença entre a alíquota interestadual do ICMS e sua alíquota interna no estado destino da mercadoria.
Sem perda de tempo, os estados e o Distrito Federal aprovaram o Convênio ICMS nº 93/2015, mediante reunião do Conselho Nacional de Política Fazendária-CONFAZ, disciplinando os procedimentos a serem observados nas operações de comércio eletrônico de bens e serviços a consumidor final, não contribuinte, localizado em outro estado.
Ocorre que, a Constituição Federal, como norma fundamental e suprema, apenas dispõe sobre a regra matriz de incidência tributária, ou seja, prevê a hipótese de cobrança de determinado tributo, cabendo à lei federal (e não ao CONFAZ) a regulamentação e detalhamento da hipótese de incidência tributária prevista na Constituição Federal.
Assim, não poderia o CONFAZ, por meio de convênio, usurpar a competência da lei federal e regulamentar a cobrança do Difal.
Diante dessa ilegalidade, os contribuintes se socorreram do Poder Judiciário e, em 24 de fevereiro de 2021, o Supremo Tribunal Federal – STF, ao julgar conjuntamente a Adin nº 5.469 e o Recurso Extraordinário 1.287.019, declarou a inconstitucionalidade da cobrança do Difal com base no Convênio CONFAZ ICMS nº 93/2015, deixando claro ser necessária a edição de lei complementar para amparar referida cobrança.
Adicionalmente, o STF modulou os efeitos da decisão de inconstitucionalidade para 2022, exercício seguinte ao da declaração de inconstitucionalidade, possibilitado que a necessária lei federal fosse promulgada ainda em 2021.
Contudo, 2021 chegou ao fim e a tão necessária lei complementar que finalmente regularia a EC nº 87/2015 e, por consequência, a cobrança do Difal, somente foi publicada em 5 de janeiro de 2022 (LC nº190/22).
Portanto, os contribuintes se perguntaram: estamos ou não sujeitos ao recolhimento do Difal no exercício 2022?
Para responder a esse questionamento, devemos trazer à consideração dois princípios norteadores do direito tributário: o princípio da anterioridade geral ou anual e o princípio da anterioridade nonagesimal.
Ambos os princípios protegem os contribuintes de mudanças repentinas na legislação tributária, estabelecendo que deve haver um lapso temporal entre a promulgação da lei que instituiu ou aumento determinado tributo e o início de sua exigência.
Assim, pelo princípio da anterioridade geral (art. 150, III, b, CF/88) os entes tributantes (União, estados e municípios) não podem cobrar tributos no mesmo exercício em que a lei que os instituiu ou aumentou tenha sido publicada.
Por sua vez, o princípio da anterioridade nonagesimal estabelece que, observado o princípio da anterioridade geral, a cobrança tributária somente pode ocorrer passados 90 dias da lei que instituiu ou majorou tributos (art. 150, III, c, CF/88).
Ao ser promulgada, a Lei Complementar nº 190 fez expressa menção de observância do art. 150, inciso III, alínea “c” da Constituição Federal, ou seja, ao princípio da anterioridade nonagesimal, contudo, referido artigo dispõe expressamente a observância do princípio da anterioridade geral, previsto na alínea “b”.
Dessa forma, parece lógico concluir que o Difal somente poderá ser cobrado em 2023, ou seja, no exercício seguinte ao exercício em que foi publicada sua lei instituidora.
Contudo, essa não é a conclusão dos estados: muitos estados, como por exemplo São Paulo, anteciparam-se e, antes mesmo da promulgação da lei complementar, já promulgaram leis estaduais regulamentando a cobrança do Difal no seu território e prevendo sua cobrança após decorrido o período de 90 dias, sob o argumento que o Difal não foi instituído em 2022 com a promulgação da LC nº190/22, visto que sua cobrança já existia anteriormente.
Com esse simplório argumento, os estados se esqueceram que, ao declarar a usurpação de competência pelo CONFAZ no tocante à regulamentação do Difal e declarar a inconstitucionalidade dos artigos relativos à tal cobrança do Convênio CONFAZ ICMS nº 93/2015, tornou-se tal exigência nula de pleno direito, ou seja, ela nunca existiu de fato anteriormente.
Assim, acreditamos que a conclusão dos estados e sua respectiva justificativa não tem como se sustentar em virtude da clareza redacional da Constituição Federal ao prever os princípios da anterioridade geral e nonagesimal, ambos de observância obrigatória na esfera tributária.
Portanto, considerando que a LC nº 190, regulamentando a cobrança do Difal, foi promulgada apenas em 5 de janeiro de 2.022, é certo que sua aplicabilidade deve ser postergada para 2023, em observância aos princípios da anterioridade nonagesimal e geral.
Aconselhamos que os contribuintes lesados por tal cobrança acionem imediatamente o Poder Judiciário visando salvaguardar seu direito de não recolhimento do Difal no ano de 2022.