Por Tainah Mari Amorim Batista
Advogada
Godeghese e Silva Advogados Associados
A transferência de bens imóveis para empresas, ou a chamada integralização de capital com imóveis, é operação bastante conhecida, sendo utilizada em larga escala, especialmente em planejamentos sucessórios e tributários.
Na esmagadora maioria das vezes, a transferência de imóveis para pessoa jurídica é feita com o objetivo de integralizar o capital social, seja quando da abertura da empresa ou em decorrência de posteriores aumentos de capital.
Nos termos da Constituição Federal (art. 156, inciso II), a transferência onerosa de imóveis constitui fato gerador do Imposto de Transmissão de Bens Imóveis — ITBI, destinado aos cofres públicos municipais. Cuidou, no entanto, o legislador de afastar a incidência de tal imposto na transmissão de imóveis para incorporação ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital, bem como em decorrência de operações de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, salvo se, nesses casos, a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda de imóveis, locação imóveis ou arrendamento mercantil.
À luz de tal dispositivo, predominava o entendimento de que a transferência de imóveis para pessoa jurídica estaria a salvo da incidência do ITBI, exceto se a empresa adquirente tivesse preponderância no exercício de atividades imobiliárias, assim caracterizada quando tais atividades representem mais de 50% da sua receita operacional, nos dois anos anteriores à transmissão e nos dois ou três anos subsequentes, a depender do momento do início das atividades.
Além disso, na prática, a transferência do imóvel para pessoa jurídica é comumente feita pelo valor constante da Declaração de Imposto de Renda dos sócios, visando evitar a apuração de ganho de capital e, consequentemente, a exigência de recolhimento do imposto de renda.
No entanto, o Código Tributário Nacional determina que a base de cálculo do ITBI é o valor venal do imóvel, de modo que, nas operações não abrangidas pela hipótese de imunidade, o ITBI é calculado com base no valor venal fixado pelo município e não pelo valor de transferência atribuído para efeito da transmissão, se este for menor.
A questão relativa à incidência ou não do ITBI nas incorporação de imóveis ao patrimônio de pessoa jurídica e a base de cálculo de tal imposto, ganhou novos contornos com recentes julgamentos realizados pelos Tribunais Superiores.
Por meio do julgamento ao Recurso Especial nº 1.937.821, realizado em fevereiro deste ano, o Superior Tribunal de Justiça — STJ firmou as seguintes teses: a) a base de cálculo do ITBI é o valor do imóvel transmitido em condições normais de mercado, não estando vinculada à base de cálculo do IPTU, que nem sequer pode ser utilizada como piso de tributação; b) o valor da transação declarado pelo contribuinte goza da presunção de que é condizente com o valor de mercado, que somente pode ser afastada pelo fisco mediante a regular instauração de processo administrativo próprio (art. 148 do CTN); c) o Município não pode arbitrar previamente a base de cálculo do ITBI com respaldo em valor de referência por ele estabelecido unilateralmente.
Nas operações de incorporação de imóvel no patrimônio de pessoa jurídica, a decisão do STJ traz relevante impacto, na medida em que determina que a base de cálculo do ITBI, quando devido, será o valor de mercado, presumindo-se ser aquele atribuído pelo contribuinte na transmissão, o que pode representar significativa redução do imposto, se comparado ao que seria devido se adotado o valor venal.
Todavia, alguns alertas devem ser feitos. O primeiro é que, apesar da decisão do STJ ter sido proferida sob o regime de recursos repetitivos, ainda não transitou em julgado, em virtude de recursos interpostos pelo município de São Paulo, visando, inclusive, levar a matéria à apreciação do Supremo Tribunal Federal — STF.
Em que pese os municípios devam observar os julgamentos proferidos em recurso repetitivo, há notória relutância em assim fazê-lo. Os cartórios de imóvel, por seu turno, podem ser responsabilizados caso promovam o registro da transferência de imóvel sem a quitação do ITBI devido. Ou seja, na prática, há ainda algumas etapas a serem superadas para que o contribuinte possa, com tranquilidade, recolher o ITBI sobre o valor da transação e não sobre o valor venal.
Sob outra perspectiva, a tese fixada pelo STJ deixa claro que a base de cálculo do ITBI é o valor de mercado do imóvel, de modo que, caso o contribuinte adote valor de transação que não seja compatível com o valor de mercado, estará sujeito à cobrança de eventual diferença apurada pela prefeitura.
Já o Supremo Tribunal Federal, em julgamento ao Recurso Extraordinário nº 796.376, realizado em 2020, estabeleceu a seguinte tese de repercussão geral: “A imunidade em relação ao ITBI, prevista no inciso I do § 2º do art. 156 da Constituição Federal, não alcança o valor dos bens que exceder o limite do capital social a ser integralizado”. Em outros termos, se o valor do imóvel exceder o valor do capital social a ser integralizado, haverá incidência do ITBI, mesmo em operações que, a princípio, seriam imunes.
O caso analisado pelo STF envolvia uma empresa, cujo capital social, no valor de R$ 24 mil, fora integralizado mediante transferência de imóveis avaliados em mais de R$ 800 mil. De acordo com o entendimento adotado pela maioria dos ministros do STF, a imunidade do ITBI visa evitar a tributação do valor destinado à integralização do capital social, não se aplicando sobre eventuais excedentes. O acórdão relativo a tal julgamento já transitou em julgado, não sendo, portanto, passível de modificação e, tendo sido proferido sob o regime de repercussão geral, deve ser observado por todos os órgão do judiciário.
Da interpretação conjugada das decisões do STJ e do STF acima referidas, pode se extrair a seguinte conclusão: se a base de cálculo do ITBI é o valor de mercado e considerando o entendimento de que a imunidade do ITBI não abrange o valor do imóvel que exceder o capital integralizado, se o contribuinte transfere o imóvel para a pessoa jurídica por valor inferior ao de mercado (como normalmente ocorre quando considerado o valor da declaração do IR), há risco de exigência do ITBI sobre eventual diferença, mesmo se a transmissão ocorrer em operações abrangidas pela imunidade.
Um outro posicionamento importante pode ser extraído do julgamento proferido pelo STF. Em seu voto, o ministro Alexandre de Moraes expressou entendimento no sentido de que a ressalva de inaplicabilidade da imunidade do ITBI na hipótese de atividade imobiliária preponderante estaria relacionada apenas e tão somente nas transmissões decorrentes de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, não se aplicando, portanto, na transferência para integralização de capital social. Em outros termos, de acordo com a posição adotada pelo ministro, a não incidência do ITBI na transmissão de imóvel para integralização de capital social seria aplicável mesmo se a empresa adquirente tivesse atividade imobiliária preponderante.
Cabe salientar que a posição do ministro foi manifestada em seu voto e não integrou a tese de repercussão geral, de modo não vem sendo admitida pelas prefeituras — como era de se esperar. Não se pode, todavia, ignorar que tal entendimento constitui um importante precedente nas discussões judiciais sobre o tema e pode, quem sabe, ensejar uma futura consolidação da interpretação da matéria pelo STF.